Otávio era um funcionário brilhante que foi diversas vezes premiado por seus superiores. Mas ele realmente conhecia o fruto de seu trabalho?
Otávio era um funcionário brilhante que foi diversas vezes premiado por seus superiores. Mas ele realmente conhecia o fruto de seu trabalho?
Capítulo 1 – Céu Azul
Otávio preparava-se para o dia de trabalho glorioso na Fábrica. Era o orgulho de uma família pobre de 13 irmãos, típica dos anos 50. A Fábrica era o lugar onde muitos sonhavam em trabalhar e poucos conseguiam a glória de entrar pelos portões imponentes de ferro, com leões esculpidos em bronze e postados ao lado de cada pilar que escorava o portão e o muro alto e assustador, que se estendia ao redor da estrutura.
Um trem preto-reluzente chegava cada 3 horas trazendo do país inteiro nova matéria-prima para a Fábrica. Depois de uma operação minuciosa de inspeção e descarga da matéria-prima, o trem preto-reluzente levava embora a produção com extrema eficácia.
Trabalhar naquela Fábrica era ter um alto salário, levar uma vida confortável, ter privilégios e muito prestígio social. Que o diga o solteirão Otávio que ostentava pelas ruas da capital seu Cadillac Eldorado ano 1953 cheio de detalhes cromados que, à luz do sol, ofuscavam a visão das pessoas que andavam pelas ruas tranquilas e pacatas daquela cidade modelo.
Otávio era diferente dos irmãos, primeiro colocado em todo o período escolar, foi chamado para trabalhar na fábrica desde os 16 anos de idade. Naquela época poucos conseguiam estudar e o cargo de Office Boy para um garoto de 16 anos e família pobre parecia promissor. Era o único de sua casa que tinha bons sapatos para calçar e boas roupas para vestir. A Fábrica não permitia andar pelas ruas que não fosse em trajes impecáveis.
Era fácil identificar os trabalhadores da Fábrica, eles andavam orgulhosos com seus crachás presos às roupas onde quer que fossem. O tratamento e reverência destinado ao trabalhadores eram um convite a deixar seus crachás à mostra, mesmo que isso fosse uma recomendação expressa: jamais andar sem eles. Em qualquer situação!
Otávio, o mais velho dos 13 irmãos morava em uma bela casa no centro da cidade, próximo a uma linda lagoa natural com ipês rosas e amarelos em suas bordas. Nos fins de tarde, ele costumava sair em sua varanda, geralmente acompanhado de uma garota de programa oferecida pela própria Fábrica, para olhar o reflexo das árvores e dos belos ipês floridos nas águas tranquilas da lagoa.
A fumaça percorria o caminho rumo ao céu tomando formatos de caracol ora maiores ora menores, enquanto ele saboreava seu Hollywood, recém saído da carteira de cigarro metálica com o logo da Fábrica pintado de preto e vermelho. Ganhou o presente de seu chefe, Geraldo, por sua postura exemplar.
Havia um código de conduta muito rígido, que era cobrado de todos os funcionários. Ao todo, eram 200 pessoas bem vestidas, bem remuneradas que ocupavam os quarteirões em volta da Lagoa dos Ipês. Área residencial reservada aos distintos cidadãos que ostentavam o crachá da Fábrica.
Eles eram a elite da capital, cujo orçamento era alvo da inveja de muitas cidades maiores. A capital que se formou em torno da Fábrica tinha uma população calma e pacata, quase silenciosa. Tudo era muito pacífico e parado.
Os poucos delitos, cometidos em geral por pessoas que não eram da cidade, eram tratados rapidamente pelo delegado José Antonio. Um homem de quase dois metros de altura, olhos castanhos, cabeça retangular e ombros largos, um sujeito bastante amedrontador. Era uma das poucas pessoas que podia frequentar a Fábrica sem ostentar o crachá. Ele preferia andar com sua estrela dourada e carinhosamente polida por sua esposa.
Naquela cidade não era comum ver as mulheres andando pelas ruas sem companhia ou seus uniformes de trabalho. As poucas que se arriscavam eram surpreendidas pelas patrulhas e levadas ou para a delegacia ou para a Zona Alta, região mais pobre da cidade que abrigava o resto da população.
A vida na Zona Alta era bem simples, mas a paz e o silêncio reinavam absolutos. A prefeitura levava à região todos os suprimentos necessários e era dona das casas onde as pessoas moravam, inclusive os 12 irmãos e a mãe de Otávio. Em troca, os moradores faziam alguns serviços para a prefeitura para a manutenção da cidade.
Não havia muita oferta de emprego no comércio, este, em geral, estava a serviço único e exclusivo dos funcionários da Fábrica ou de viajantes que passavam por lá. Pois eram os únicos em condições de frequentar os luxuosos restaurantes, cafés, teatro e cinema.
Quando Otávio sentia saudades, saía com seu Cadillac para uma visita à casa da mãe. Segundo as normas da Fábrica, os familiares não poderiam morar com ele ou frequentar os restaurantes e outros comércios da cidade pois não tinham crachás. Mas isto não importava, quando Otávio chegava à casa da mãe era recebido pelos irmãos com demonstrações de carinho tímidas mas sinceras.
Otávio pensava que, às vezes, a vida na Zona Alta passava devagar. As pessoas eram pacatas, as ruas silenciosas, não havia agitação e, mesmo com a vida simples, as pessoas pareciam não ligar. Pareciam conformadas e felizes.
Capítulo 2 – O Mistério do Corredor
A cidade, assim como a Fábrica, possuía suas regras. O serviço era realizado com uniformes cedidos pela prefeitura e o transporte era gratuito para ir e voltar do trabalho, tudo sustentado pelos impostos gerados pelo orgulho da região, que era a Fábrica, conhecida em muitos lugares do país por sua marca estampada naquele trem preto-reluzente, lindo, que apitava alto, quebrando o silêncio que, a cada dia, se espalhava pelo país. Parece que a paz reinaria finalmente onde antes havia tantos conflitos e mortes. Os ânimos da população mais pobre e revoltada se acalmavam, enquanto a Fábrica funcionava a todo vapor.
“O progresso se espalha pelo país.” dizia o anúncio da Fábrica, postado na entrada, logo depois dos portões, junto com o busto de seu fundador, Manoel, um premiado cientista que chegou de Portugal disposto a instalar sua tecnologia inovadora em benefício da sociedade. Foi tão bem-sucedido que conseguiu construir uma fábrica e ainda guardar muito dinheiro.
Os manuscritos, tratados e desenhos de Manoel eram relíquias acessíveis apenas aos mais altos escalões da Fábrica, aqueles funcionários com comprovada lealdade às normas e austeridade na observância de seus companheiros de trabalho. Tudo funcionava bem assim.
Havia um grupo destacado de trabalhadores que, embora não fossem da diretoria, eram os mais bem pagos, pois sua contribuição e serviços prestados eram a razão de ser da Fábrica. Este grupo morava em grandes e confortáveis casas, construídas no fundo da estrutura, ao lado de onde morava Manoel. Todos deste grupo eram seus discípulos e confidentes.
A Família de Manoel também morava na Fábrica, numa bela casa branca com portas e janelas azuis, e um grande painel de azulejos portugueses que retratavam com perfeição a obra “A Criação de Adão”, de Michelângelo. Ao lado, uma pesada porta de duas folhas que abriam juntas ao serem empurradas por maçanetas de ferro envernizado, trazidas do antigo laboratório em Portugal. A porta dava acesso a um imponente Hall que guardava lembranças de Manoel com a esposa, seu único e amado filho, e dos dias felizes em que ele não estava às voltas com seus algozes.
Otávio, embora estivesse confortável com sua vida, sentia que estava cada dia mais solitário, longe da família e morando sozinho, ele pensa ser hora de encontrar uma boa moça para se casar e ter seus próprios filhos. Mas havia algo mais a ser considerado, como constituir uma família se ele não gostasse de nenhuma mulher que trabalhasse na Fábrica? As normas eram rígidas e bastante claras, a Lagoa dos Ipês era a morada exclusiva dos funcionários, ninguém ali poderia estar sem um crachá, salvo os funcionários com uniformes da prefeitura.
Numa manhã de domingo, Otávio está em sua casa com a camisa listrada de bege e azul escuro, que ganhou de presente de Geraldo, mais uma vez por sua postura exemplar, e sente-se atraído por uma das mulheres que passam em frente a sua bela casa. Elas usam o uniforme da prefeitura. Entre todas, uma moça de cabelos escuros, compridos, baixinha, sorriso tímido e olhar pálido chama a atenção de Otávio. As garotas pareciam não ter muito ânimo, apenas seguiam em frente sem trocar uma só palavra.
Mas isso não importava. Otávio, entre uma tragada e outra de seu Hollywood, observa e armazena em sua mente privilegiada, detalhes daquela mulher que havia balançado seu coração. Ele acompanha a marcha constante e sem perturbações das moças até que elas somem de sua vista. Rapidamente ele monta em seu Cadillac e sai disposto a descobrir mais sobre as meninas. Nunca havia sentido isso antes, estava realmente interessado naquela mulher que sequer reparou em sua presença.
Pensava em como iria abordar as garotas mas, ao mesmo tempo, imaginava como seria se ela retribuísse o sentimento. Como faria para encontrá-la? Como poderia levá-la para casa? Estaria sendo Observado?
Ele continua o caminho aflito para encontrá-la. Dobra a esquina com aquele carro reluzente desde os primeiros raios de luz da manhã e vê as garotas seguindo em direção à escola. Ele acelera e o ronco do motor Cadillac de 8 cilindros suprime, por um instante, o canto repicado das Saíras de 7 Cores que descansam nos galhos aconchegantes dos ipês floridos. Parecia o cenário perfeito para um homem apaixonado e disposto a tudo, conquistar seu amor.
Otávio não consegue emparelhar o carro com as moças antes que elas entrassem pelo portal da escola. Ele estaciona seu carro e pensa em desistir, mas havia algo, uma vontade maior que o puxava para dentro da escola, que o faz desligar o Cadillac, descer e seguir aquelas mulheres.
Ainda sem saber ao certo se podia, ele sentiu que deveria e entrou pelo portal, acessando uma alameda de concreto cercada de árvores e grama bem cortada. Uma paisagem incrivelmente bem cuidada. Ele aperta o passo mas não corre, não quer ser percebido. As moças seguem em frente e pegam um desvio na alameda para seguir a um depósito que fica na parte de trás da escola.
Otávio continua seu caminho atrás das garotas e chega cada vez mais perto. Elas então adentram em um galpão grande com uma entrada pequena e sem janelas na frente. em volta do galpão, um alambrado meio enferrujado denuncia que ali não havia tanto zelo quanto no caminho para a escola.
Ele adianta ainda mais o passo e chega até a porta por onde entraram as mulheres. Quando olha para dentro do galpão, vê apenas um corredor mal iluminado que parece estar vazio. Nenhum barulho, sequer passos, podem ser ouvidos. Um arrepio sobe pelo seu corpo pois era um cenário distante do que seus olhos se acostumaram a ver: o verde das matas, o cinza do asfalto, o amarelo das faixas de trânsito impecavelmente pintadas, o colorido dos ipês e o bronze lustrado dos adornos da entrada da Fábrica.
Um passo adiante e ele está dentro do corredor pouco iluminado por lâmpadas incandescentes e fracas que davam a ideia do que seria um caminho. Seus ouvidos não eram capazes de captar o cantar dos pássaros ou das folhas se debatendo com os ventos. O Silêncio naquele corredor escuro era algo inimaginável naquela cidade tão perfeita que ele trabalhou tanto para transformar.
Por um instante ele pensa em voltar. Aquela vontade forte que o amor lhe impunha, empurra seu corpo corredor adentro e ele cria coragem para seguir em frente a passos lentos e silenciosos. O silêncio é cada vez mais profundo, Otávio só escuta o som de sua respiração, agora ofegante pelo esforço dos passos apressados na tentativa de encontrar as garotas, e o leve tocar de seus sapatos Stacy-Adams preto-reluzentes no chão de concreto.
Otávio caminha mais alguns passos e não consegue encontrar nenhuma porta lateral. Ele segue adiante em direção a uma lâmpada mais forte que está a uns 10 metros dentro do corredor. Silenciosamente ele continua a caminhada e começa a sentir os efeitos claustrofóbicos daquele corredor escuro.
– Como pode alguém entrar aqui se não há nada? Disse Otávio para ele mesmo.
Ele então aperta o ritmo dos passos e consegue alcançar a luz mais forte que ilumina um corredor perpendicular ao que estava. Otávio coça a cabeça, olha para trás e tem vontade de sair correndo pela saída do galpão com medo de estar sendo vigiado por patrulhas da Fábrica. Ele volta seu olhar para a lâmpada, olha para o caminho da direita e vê um corredor que parece não ter fim, tão mal iluminado quanto o que o levou até ali. Olha para a esquerda e vê outro trecho do corredor um pouco mais iluminado com uma esquina que pode ser percebida apesar das poucas luzes.
Depois de longos 2 minutos de indecisão entre direita, esquerda ou a saída para sua vida perfeita, ele segue pela esquerda em passos apressados. Sua respiração fica mais ofegante a cada passo, ele está apavorado com o lugar embora não consiga parar de explorar. Sente que sua vontade de seguir as moças é maior que sua lucidez.
Capítulo 3 – Pátio Vazio
Quando chega à esquina ele interrompe a caminhada e olha devagar pela quina da parede para enxergar o que há. Seus olho esquerdo arregalado é o primeiro a avistar mais um corredor a ser seguido. A Iluminação também é precária, contra isso não haveria como lutar. Ele observa a silhueta de uma porta ao final do corredor, parece algo menor que a moldura dos batentes, por isso, uma luz faz seu contorno.
Otávio segue em direção à porta e pare em frente a ela. Aproxima seu rosto na tentativa de escutar algo, encosta sua orelha esquerda no metal gelado daquela porta e tenta não fazer barulho com sua respiração suprimida. O silêncio do outro lado da porta parece absoluto, Otávio põe a mão na maçaneta, a esta altura não tão gelada quanto sua mão, segura com força e torce lentamente com medo que ela fizesse barulho.
Após um leve gemido das dobradiças de metal velhas mas ainda lubrificadas, a porta está aberta e Otávio se depara com um grande vestiário. Um local com ventilação forçada que dava mais oxigênio a seus pulmões já cansados de trabalhar com tão pouco ar puro. Ele respira fundo 4 vezes, retoma pouco do vigor que havia perdido naquela curta caminhada, seca o suor da testa que escorre para os olhos e para as orelhas.
As roupas confortáveis agora estavam encharcadas de suor provocado por calor e pavor. Ele limpa mais um pouco do suor com a manga da camisa e volta-se para os armários de metal cinza. Num exame mais minucioso das portas dos armários ele percebe que estão trancadas. O vestiário, mais bem iluminado que os corredores, tem mais lâmpadas no teto, um buraco da ventilação bem no centro e é dividido ao meio por um banco largo de madeira que um dia já foi azul, mas exibe uma pintura descascada e desgastada.
Otávio então cria coragem e começa a explorar o ambiente. Por duas vezes ele pergunta:
– Tem alguém aqui?
Sem resposta ele vasculha a área de chuveiros que fica reservada no vestiário e não encontra ninguém. Como não há mais para onde ir, Otávio sai do vestiário e anda depressa pelo corredor, vira a esquina e, em vez de voltar para a saída do galpão, segue rapidamente para o corredor profundo que não fora sua primeira escolha. Estava angustiado, sentia um forte aperto no peito com a certeza de que havia algo errado naquele lugar. Não era possível que 6 moças tivessem sumido daquele jeito.
Ele adentra mais no corredor escuro e chega a outra esquina que leva a uma nova porta. A mesma visão que teve do primeiro corredor está logo adiante. O coração disparado faz com que ele se apresse em abrir a porta que responde com um rápido, porém alto, gemido de suas dobradiças.
Otávio agora está diante de um escritório com um quadro de feltro verde à sua frente, onde há diversos recados pregados com alfinetes coloridos, do lado direito uma mulher com uniforme da prefeitura concentrada em sua máquina de escrever, copiando alguma coisa que está em folhas em sua mesa.
– Me desculpe, não sabia que havia alguém aqui. Disse Otávio.
– Você sabe onde estão as 6 mulheres que entraram aqui há pouco? Complementa.
A mulher segue teclando em sua velha máquina como se não estivesse escutando Otávio.
– Moça você está me escutando? Sabe para onde foram aquelas mulheres? Pergunta novamente.
A mulher continua entretida em seus afazeres até que Otávio senta-se em frente a ela numa das duas cadeiras de madeira à disposição na mesa. A moça para de datilografar e olha com um olhar sem profundidade para ele. Ela parece não estar percebendo sua angústia, mas ele insiste em perguntar onde estavam as garotas que haviam entrado ali. A garota da máquina de escrever, muito parecida com as outras, olha vagarosamente para Otávio, percorrendo seus olhos, nariz, boca, pescoço até se fixar em seu crachá. Ela aponta o dedo para o crachá e indica uma porta à direita. Otávio agradece e vira-se para a porta, a mulher da máquina sorri para ele e volta-se para a máquina com as mãos habilidosas e incansáveis a datilografar.
Otávio abre a porta e só então percebe que está dentro da Fábrica. Ele entra em uma espécie de laboratório, com paredes muito brancas e bastante iluminação, além de microscópios e bancadas impecavelmente limpas. Repara que existem muitos instrumentos que ele não compreende e segue em frente pelo laboratório que possui no fundo grandes janelas de vidro.
Ao chegar às grandes janelas, Otávio vê um grande pátio, impecavelmente limpo. Muito bem iluminado e muito semelhante a uma linha de montagem, porém não havia carros, caminhões, máquinas de costura, geladeiras ou qualquer outra coisa sendo fabricada ali.
Ele acha tudo aquilo muito confuso e misturando curiosidade com medo avança pelas escadas até chegar ao pátio embaixo. Com a leve sensação de que está sendo observado ele segue decidido a encontrar aquelas mulheres. O pátio é um grande retângulo com 4 corredores que levam a áreas distintas. Parece que todos ali estão de folga, pois era Domingo. Otávio está muito tenso e começa a sentir fome. Ele sobe novamente pelas escadas, passa pelo laboratório e quando chega ao escritório, já não encontra mais a moça da máquina de escrever.
Ele olha para o corredor, percebe que não há ninguém lá, e resolve olhar o que a moça estava digitando, talvez pudesse descobrir algo. Ao folhear os papéis percebe que são listas intermináveis de nomes. Muitos nomes, seguidos de sobrenomes, cidades de origem e, ao fim de cada folha, um carimbo com data e hora. Otávio não compreende o que está acontecendo, com medo, ele corre pelo corredor e vira à esquerda para sair do galpão.
Quando chega à porta, ele sai correndo em direção à alameda principal e vê de longe o delegado José Antonio vistoriando seu carro. Se esconde atrás de alguns arbustos e fica observando enquanto o delegado retira seus pertences do Cadillac e manda um dos policiais dirigi-lo até a delegacia.
Otávio sente um vazio dentro da barriga e sente vontade de desmaiar de tanto medo. Nunca poderia imaginar ter seu carro levado pelo delegado, sabia que teria que dar boas explicações para aquele homem astuto e austero. Otávio não sabia mentir, seria, provavelmente, o fim de tudo.
O delegado não faz menção de ir embora e o tempo começa a jogar contra Otávio, ele agora está escondido entre os arbustos, sujo, com medo e com muita fome. Durante horas o delegado fica em frente ao portal de entrada da escola, fumando charutos e conversando com duas pessoas que Otávio não conseguiu reconhecer.
Ele sente a barriga apertar de fome e sua enorme vontade de fumar começa a incomodá-lo. O suor verte de suas têmporas enquanto ele começa a sentir-se encurralado. Pensa mil maneiras de se desculpar por estar ali, mas parecia que nada seria convincente. Quando a noite chega, Otávio volta sorrateiramente para o galpão. Daria um jeito de se esconder por lá. Ele entra pela primeira porta, segue rapidamente para o laboratório e desce pelas escadas assustado.
Quando chega à linha de montagem, escolhe um dos corredores que tem uma placa dizendo: Entrada de Matéria-Prima. Ele corre para lá e busca um lugar para se abrigar e passar a noite. Sentia tanto medo de ser pego que acabou desistindo de procurar algo para comer. Deita-se sobre um banco azul, como os do vestiário, que ficava próximo à porta de entrada das matérias-primas, recosta sua cabeça encharcada de suor sobre suas mãos sobrepostas e dá um longo suspiro.
Um minuto depois ele se levanta assustado.
– E as garotas?
– Onde elas foram para? Não as vi sair. Diz Otávio em voz baixa.
Ele olha para os lados pois ainda está bastante assustado e decide deitar, agora, embaixo do banco, com medo de o delegado entrar no prédio e encontrá-lo. Cansado, Otávio pega no sono.
Capítulo 4 – O Produto Final
No dia seguinte, acorda assustado com o apito do trem que parece cada vez mais próximo. Ele rapidamente se levanta e tenta encontrar uma brecha para olhar e ver o que está para acontecer. O apito mostra que o trem está chegando à Fábrica e Otávio corre para longe da porta, buscando outro lugar para se esconder.
Ele olha para pela janela de vidro do laboratório e corre para lá, subindo as escadas com uma incrível velocidade. Ele acredita que o crachá pode salvá-lo nesta hora e decide arriscar ficar junto à garota da máquina de escrever.
Ele passa pelo laboratório e encontra a mulher datilografando listas de nomes, parecia que estava cadastrando a população do país inteiro, de tanto que datilografava, mas ela permanece sem reparar em Otávio, apenas concentrada no que faz.
Ele ouve então a abertura da porta de entrada de matéria-prima, que fazia um barulho agudo, alto e irritante. Decide agir como se estivesse trabalhando, apesar de sua roupa encharcada de suor e sua fraqueza de fome e medo, age como se estivesse supervisionando o trabalho, lá do laboratório.
Corre para a janela e observa a movimentação de um grande número de pessoas que tomam suas posições na linha de montagem da Fábrica. Eram todas uniformizadas com o crachá, mas Otávio nunca as vira. Seriam de outra unidade? Era um uniforme sobreposto às roupas, como o avental de um médico, cada equipe se reunia em torno de uma marcação no chão.
As equipes eram formadas por duas pessoas, uma segurava panos e uma bacia com água, a outra segurava uma espécie de martelo e um pino fino e comprido com uma cabeça achatada, além de uma cinta de couro na cabeça com uma lâmpada acoplada a um disco de metal.
Ainda confuso, Otávio tentava identificar o que poderia estar acontecendo, quando um monte de macas começa a entrar na Fábrica. Cada maca transportava uma pessoa desacordada que era posicionada entre as duas pessoas, respeitando cada marcação no chão.
Era tudo muito simultâneo e bem coordenado, Otávio estava assustado e admirado ao mesmo tempo, ele, finalmente veria o fruto do seu trabalho. Após o posicionamento preciso das macas, o médico colocava o pino acima do olho direito e angulava com precisão, para as 5 batidas sempre iguais do martelo. Então uma leve girada no sentido horário e o pino era retirado. A segunda pessoa da equipe rapidamente colocava um pano sobre o ferimento para estancar o sangue, lavava as mãos e, enquanto o maqueiro retirava a pessoa para que outra maca fosse trazida, a equipe posicionava-se para a nova intervenção.
Otávio observa incrédulo o que a Fábrica produzia. Ele percebeu que a Fábrica estava transformando o dia-a-dia das cidades produzindo a mudança de comportamento das pessoas. Por isso ele jamais poderia ter encontrado o caminho para a linha de produção, as regras eram claras. O segredo industrial guardado a sete chaves.
Enquanto um filme passa pela sua cabeça, o procedimento frenético não leva mais que 5 minutos para cada paciente, entre entrada e saída de maca. As pessoas eram levadas de volta ao Trem para voltarem às suas cidades de origem.
Apavorado, Otávio abre a porta e passa pelo escritório, dando de cara com José Antonio e Geraldo. Ele se assusta, chega a ficar paralisado como se o sangue sumisse de seu corpo e quase desmaia. Geraldo põe as mãos sobre seus ombros e o leva de volta à vitrine da Fábrica.
– Este é o progresso Otávio. Vamos construir um mundo onde os desordeiros não tem vez. Não gosta do silêncio das noites e da cantoria dos pássaros das manhãs? Tudo é fruto do que fazemos na Fábrica! Você fez um grande trabalho. Disse Geraldo.
Otávio sente a secura na boca e o suor escorrer por todo o seu corpo, ele sente o desfalecimento como se sua alma estivesse para sair de lá. Lembra das garotas de programa, do seu Cadillac, da sua bela casa e pensa em sua família. Enquanto um filme passa por sua mente mais uma vez, ele vê na linha de produção da Fábrica aquela garota por quem se apaixonou no dia anterior. Ela estava ainda naquele uniforme, cuidando do sangue que caiu, limpando o chão da Fábrica para a próxima leva de matéria-prima.
– O país inteiro está comprando nossos serviços. Aperfeiçoamos aquilo que vai transformar o mundo num lugar tranquilo de se viver, tudo ficará sob controle Otávio. Geraldo complementa orgulhoso.
– Sabe Otávio, Lobotomia é o remédio adequado para quem não segue as regras, para os curiosos e para quem não tem o crachá. Exclama José Antonio enquanto Geraldo arranca da roupa de Otávio o Crachá.
Otávio sente o corpo cair quando José Antonio aplica-lhe uma injeção que o faz desmaiar.
Daquele dia em diante, Geraldo desfilava empolgado pelas ruas no belo Cadillac Eldorado ano 1953, prestando atenção ao canto dos pássaros e à beleza dos ipês da lagoa. A única coisa que agradava Geraldo mais que passear pelas ruas tranquilas e pacatas, era buzinar e acenar para o jardineiro com aquela bela camisa listrada de bege e azul escuro sob o uniforme da prefeitura.
Fim
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos, situações, locais da vida real etc, terá sido mera coincidência. É proibida a cópia, reprodução, distribuição, exibição, criação de obras derivadas e uso comercial sem a sua prévia permissão do autor.
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